1º ciclo

Histórias

 

 

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Lenda do galo que cantou a tempo

 

Em certas regiões do nosso País, existia o costume antigo de preparar um galo especialmente para cantar na chamada Missa da Meia-Noite do dia de Natal...
Esse galo, escolhido entre os melhores de cada terra, gozava de grandes regalias, era tratado com requintes de cautela e tinha uma alimentação privilegiada.

Na pequena e pitoresca Vila Nova do Laranjal, da freguesia e concelho de Ponte de Sor, havia também tal costume. E dava-se mesmo o galo a guardar ao homem melhor da terra. 
Conta a lenda, já gasta pelas repetições da vida, que em certo ano se apresentaram ao Meirinho  dois homens fortes e soberbos, disputando entre si o lugar de honra. 
O primeiro que falou parecia não admitir dúvidas: 
— Provo que sou o melhor! Perguntem nas redondezas... Investiguem a minha vida! 
Mas o segundo não se intimidou. E também afirmou com absoluta convicção: 
— Perdão, senhor Meirinho... O melhor sou eu. Veja as esmolas que tenho espalhado durante o ano... o bem que eu faço aos outros. 
Houve uma pausa. Depois, o primeiro dos dois homens voltou a acentuar, um tanto ironicamente: 
— Será preferível investigar, senhor Meirinho! 
Foi a vez do outro se exaltar. Fitando bem de frente o seu rival, perguntou num ar de desafio: 
— Porquê? Alguém se atreve a contestar o que eu digo? 
O Meirinho resolveu intervir, para não deixar azedar a questão. E, inclinando-se para ambos, disse na sua voz pausada e sentenciosa: 
— Basta, senhores, basta!... Sou eu quem deve resolver o vosso caso... Eu, como meirinho desta terra! 
Fazendo uma pausa propositada, a criar expectativa, o Meirinho perguntou depois, em tom arrastado e sem perder os dois homens de vista: 
— Podem apresentar alguma testemunha das virtudes que apregoam?
Ambos o olharam e se entreolharam. Sorrindo. Sorrindo com desdém e superioridade, como quem tem a certeza antecipada da vitória. 
— A menina do Laranjal!

Parecia de propósito. Tinham ambos dito simultaneamente as mesmas palavras. Logo se fitaram, furiosos. Foi a altura do Meirinho se rir:
— Mas… como é isso possível? Então os senhores têm ambos a mesma testemunha? Expliquem-se, por favor!
O primeiro dos homens avançou:
— Senhor Meirinho, quero comunicar-lhe que a menina do Laranjal será em breve minha esposa… Pelo menos, penso declarar-lhe o meu amor…
O outro não se mexeu do lugar, mas retorquiu peremptoriamente:
— Impossível! É comigo que ela vai casar… Já lhe falei nisso e ela aceitou!
O Meirinho voltou a olhar alternadamente para um e para outro.
— Não compreendo... Não compreendo... 
E, de súbito, tomou a resolução mais adequada: 
— Bem… Vamos chamar a própria menina do Laranjal!

Diz a lenda que a menina do Laranjal era, de facto, a jovem mais respeitada das cercanias. A mais respeitada e a mais querida.
Pensa-se até que a terra, toda ela, começara apenas pelo Laranjal. E daí o nome que herdara para o futuro: Vila Nova do Laranjal. Por isso, a jovem simbolizava as tradições da própria terra. 
Era órfã e vivia na companhia duma senhora idosa, a qual tratava por tia, mas cuja origem era desconhecida dos habitantes da terra. Misteriosa e estranha, a velha senhora não gozava da mínima simpatia. Todavia pouco se importava com isso, porque dominava por completo a menina do Laranjal. 
Quando a notícia chegou até elas, a jovem não escondeu a sua estupefacção. 
— Mas... se eu nem sequer os conheço... Como poderei eu casar com um deles? E qual devo escolher?... 
Aflita, buscou os conselhos da velha senhora: 
— Dizei-me, minha tia, por favor... Qual deles hei-de escolher? 
A velha senhora fungou uma risada: 
— Ora, escolhei o melhor! 
Nasceu novo espanto nos olhos da menina do Laranjal: 
— O melhor?... E qual deles é o melhor? 
Vagarosamente, intencionalmente a resposta da velha senhora fez-se ouvir. 
— O melhor é aquele que for mais rico! 
Depois, num ar de sabedoria, ajuntou: 
— Compreendeis, não é verdade? Com dinheiro, pode comprar-se o 
Mundo! Acreditai... 
A menina do Laranjal, ingénua e simples como era, abanou a cabeça, num ar de tristeza: 
— Não, não acredito, senhora minha tia! 
E, num suspiro, logo completou o seu próprio pensamento: 
— Com dinheiro, pode comprar-se o Mundo... Mas não se compra a felicidade! 
A conversa ficou por aí. O Meirinho esperava-as...
E os dois homens esperavam-nas, igualmente. Quando a menina do Laranjal e a velha senhora que dizia ser sua tia saíram à rua, ambos correram para elas. 
O mais impulsivo, e que sempre actuava primeiro, foi o que chegou mais depressa junto da menina do Laranjal, pedindo-lhe para lhe falar em particular, ao que ela acedeu, sem saber que fazer. 
Mas o outro não se incomodou. Parecia até esperar que isso acontecesse. E enquanto o seu rival se declarava publicamente à menina do Laranjal, ele conversava em surdina com a velha senhora... 
Por fim seguiram todos a caminho do gabinete do Meirinho, que não escondia a sua impaciência por tanto ter de esperar...
Sentaram-se. O Meirinho olhou-os, um por um. Fixou depois o olhar na menina do Laranjal, que estava muito pálida e trémula. 
— Dizei-me... Algum destes homens é vosso noivo? 
Timidamente, ela respondeu: 
— Só um deles me falou de amor... 
— Qual? 
O olhar da menina do Laranjal, de fugida, procurou o homem impulsivo com quem falara. E a sua voz mal se ouviu: 
— Aquele... além... 
Porém o homem aproveitou logo a ocasião, para impôr a sua autoridade.
— Claro, Senhor Meirinho! Até agora… só eu lhe falei de amor... Só eu me declarei apaixonado... Portanto, sou eu o seu noivo! 
O outro reagiu com uma risada: 
— A menina do Laranjal sabe lá o que é o amor... Ela nada resolve. Quem resolve é a senhora sua tia. E eu... Eu falei com a senhora sua tia e pedi a mão da menina do Laranjal, que me foi concedida. Sou eu, portanto, quem vai casar com ela. Não é verdade, senhor Meirinho? 
Nesse ponto enganara-se, porém. O Meirinho, segundo conta a lenda, além de Meirinho, era também homem de coração. E adorava a verdade. 
Assim, ficou silencioso, por momentos, a meditar. E depois sentenciou: 
— Tenho muita pena, meu caro senhor, mas a escolha está feita... O homem melhor da terra não pode mentir... E o senhor mentiu-me, ao dizer que já falara de amor à menina do Laranjal... Ao passo que o seu rival foi sincero e verdadeiro... E ele, portanto, o melhor. Ele ficará com o galo! 
Ergueu-se e fez sinal para que todos se erguessem. Depois disse, ainda, num sorriso: 
— Sim, ficará com o galo... E casará com a menina do Laranjal, se ela quiser. 
E certamente queria, pensou o Meirinho antes de retirar-se, porque o olhar que ela trocou com o seu preferido — era um olhar doce e meigo. Um olhar de amor.
 
O tempo correu, sem que nada mais de especial se passasse. O homem escolhido como o melhor tomara conta do galo e instalara-se já no próprio palacete da sua noiva, pois a esperança de amor estava prestes a concretizar-se em casamento... 
A velha senhora que se dizia tia da menina do Laranjal parecia indiferente aos preparativos nupciais. Ausentava-se às vezes, sem dizer nada. Porém, como era sempre estranha e misteriosa, ninguém lhe fazia perguntas. 
Por seu lado, o homem vencido (mas não convencido) garantia aos amigos que não desistia. Havia apenas que aguardar os acontecimentos... 
A menina do Laranjal e o seu eleito viviam um para o outro — e ambos para o seu amor. 
Mal podiam eles adivinhar o que ia acontecer... 
E aconteceu precisamente em vésperas de Natal! 
A notícia caiu como bomba sobre a terra. Desaparecera o galo escolhido e guardado para a Missa da Meia-Noite! 
Era o pior que podia suceder àquela gente. Tocaram os sinos a rebate, o tumulto foi enorme e o Meirinho viu-se obrigado a tomar imediatas providências, mandando prender, sem hesitação, o responsável pela existência do galo. 
De nada serviram as lágrimas suplicantes da menina do Laranjal. Nem os protestos do melhor homem da terra. Nem as juras de inocência que ambos fizeram. 
Perante a ira da multidão, o Meirinho só podia prometer: 
— Justiça será feita! 
E apontava o presumível culpado, o qual apenas sabia repetir a mesma confissão dorida e frágil: 
— Juro que estou inocente! Eu juro que estou inocente! 
Mas o Meirinho, desta vez, e com justa razão, parecia inflexível: 
— Só uma coisa te poderá salvar: revela-nos onde está o galo! 
Entretanto, no meio da multidão, o outro homem esfregava as mãos de contentamento. 
— Eu bem dizia... Pois dêem-lhe o castigo que merece! 
E, de facto, tudo se começou a preparar para esse castigo, conforme narra a antiga lenda. Nesse tempo, a morte pela forca era a mais afrontosa. E o Meirinho ordenou que preparassem a forca para a própria noite de Natal. O castigo serviria de exemplo para sempre... 
O prisioneiro, quase transformado num farrapo humano, esperou pela sua última noite — a noite de Natal. 
Que podia ele fazer? Já não tinha lágrimas para chorar, já não tinha pensamentos para pensar. Restava-lhe somente a consolação que lhe dava a menina do Laranjal, agora perdida de amor por ele e também por amor dele perdida... 
E foi na tarde do derradeiro dia que o homem, já na agonia das suas esperanças, teve uma ideia que nunca o visitara. Se falhasse, nada mais havia a esperar... 
Ao contrário do que poderia supor, a menina do Laranjal encontrou-o mais calmo: 
— Que se passa contigo, meu amor? 
— Ainda confio... 
— Mas já nada é possível... Faltam apenas poucas horas... Só um milagre de Deus! 
— Eu espero por esse milagre! Hoje é o dia em que nasceu Jesus... não deixará morrer um inocente! 
E mostrava tanta confiança na voz e no semblante, que a menina do Laranjal também se sentiu um pouco mais reconfortada. Mas, de si para si, pensou que, infelizmente, tudo estava acabado...

Chegou a noite. Nunca se vira noite de Natal semelhante a essa. A forca erguia-se, sombria e fúnebre, diante da igreja toda iluminada. 
E, como era da lei, o Meirinho permitiu que o condenado formulasse o seu último desejo. 
Serena, a voz do homem ergueu-se diante da curiosidade dos que o escutavam:
— Peço à menina do Laranjal e à senhora sua tia que subam ao alto da torre da igreja. Quero vê-las, lá bem no alto... antes de morrer! 
Imediatamente, o desejo foi satisfeito. Trémula, nervosa, a menina do Laranjal, sempre acompanhada, embora de má vontade, pela senhora sua tia, subiu lentamente ao ponto mais alto da torre da igrejinha bonita, enquanto cá em baixo se faziam os preparativos para a execução do castigo. 
E, de súbito, no meio do silêncio impressionante que se fizera, ouviu-se com verdadeiro espanto o galo cantar. Uma. Duas vezes. Três vezes. E o homem que estava prestes a morrer na forca gritou emocionado: 
— O galo vê-as! O galo vê-as! 
Foi um assombro. Muitos correram em direcção ao local donde viera esse canto inesperado. E, daí a pouco, voltavam triunfantes, trazendo o galo que estivera escondido no quintal do outro pretendente. 
O homem que se salvara da forca não podia conter as lágrimas que lhe inundavam o rosto. 
— Foi um milagre... Um milagre do Menino Jesus! 
E contou então a ideia que tivera. Lembrara-se que sempre o galo cantava, fosse pelo que fosse, quando via a menina do Laranjal e a senhora sua tia. E pensou fazer essa experiência derradeira. Se o galo estivesse na vila e visse a menina do Laranjal e a senhora sua tia no alto da torre, havia certamente de cantar. E cantara, de facto! 
Ajunta a lenda velhinha que ninguém mais soube do outro homem nem da velha senhora que se dizia tia da menina do Laranjal. Desapareceram por completo, nessa mesma noite... 
A missa do galo foi autêntica missa de festa, à qual se seguiu a tradicional «missadura». Em breve o Homem Bom, como agora lhe chamavam, e a menina do Laranjal casaram, com grande alegria de toda a gente da terra. 
Para eles, fora o Menino Jesus que fizera o milagre... E o grito do homem «O galo vê-as! O galo vê-as!» ficou perdurando na tradição, de tal modo que o nome da terra deixou de ser Vila Nova do Laranjal, para passar a ser, como hoje ainda é, Galveias — a bonita e pitoresca vila do concelho de Ponte de Sor. 
E diz-se, igualmente, que vem desse tempo e desta história a tão pitoresca expressão popular «cantaste a tempo», inspirada precisamente pelo galo que, na verdade, cantara a tempo.

 

Fonte Bibliográfica:

 

MARQUES, Gentil - Lendas de Portugal. Lisboa, Círculo de Leitores, 1997 [1962] ,

p.Volume I, pp. 55-60

 

 

 

Charlie, o limpa-chaminés e o seu gato Farrusco

 

 

Era uma vez um rapazinho chamado Charlie, que trabalhava como limpa-chaminés. Manter as chaminés limpas, para que o fogo que aquece a casa das pessoas possa arder forte e claro, é um trabalho sujo e difícil. Os limpa-chaminés têm de ser pequenos para conseguirem rastejar pelo fumeiro das chaminés e tirarem toda a fuligem e cinza; mas Charlie não se importava com a dificuldade do trabalho, pois diz-se que os limpa-chaminés trazem a sorte com eles e assim sendo, todas as pessoas que conhecia eram muito simpáticas para ele.

Sempre que ia pelas ruas com as suas escovas e vassouras, aproximavam-se pessoas que lhe tocavam para que ele lhes trouxesse sorte, ou então gritavam-lhe:

“Charlie, quando é que podes vir limpar a minha chaminé?”

Ele respondia de seguida: “Talvez para a semana, agora tenho muito que fazer.”

Charlie estava sempre muito ocupado com as chaminés.

Charlie não tinha bem uma casa à qual pudesse chamar a sua casa, pois ele era órfão e vivia com o seu gato Farrusco na arrecadação do padeiro Tibbs. Para poder viver ali, Charlie varria o chão, limpava o forno do pão e dos bolos e a chaminé da padaria. O trabalho de Farrusco era caçar os ratos que se queriam enfiar nos sacos de farinha do padeiro Tibbs.

O padeiro Tibbs era um homem simpático sempre com um sorriso no rosto, e sempre que sobrava um pedaço de bolo ou de torta, dava-o a Charlie para o jantar.

Charlie estava sempre tão ocupado, que nunca tinha tempo para brincar. Todas as manhãs tinha que se levantar muito cedo para limpar o forno e sair logo a seguir para varrer as chaminés. Quando tinha trabalho do outro lado da cidade onde ficavam as casas mais bonitas, parava por vezes um momento, para ficar a olhar para as crianças que patinavam no lago gelado do parque.

“Ai, ai!” pensava ele, “gostava tanto de poder ficar aqui um bocadinho a andar de patins…”

No entanto havia sempre demasiado trabalho para ele fazer; para além disso uns patins de gelo custavam muito dinheiro e Charlie não ganhava muito por cada chaminé que limpava. Chegava apenas para comprar escovas novas e roupa quente.

Assim, tinha que se contentar em ver as outras crianças patinar e sonhar que um dia também ele o poderia fazer com os seus próprios patins.

Um dia, quando mais uma vez observava as crianças, uma rapariga afastou-se das outras e deslizou até ao lugar onde ele estava.

“Olá”, disse ela alegremente, “como te chamas?”

“Charlie” respondeu ele, “e tu?”

“Rebecca”, retorquiu ela, “mas os meus amigos chamam-me Becky. Já te vi aqui muitas vezes. Tu és um limpa-chaminés, não és?… Posso tocar-te para que me dês sorte?”

Sorridente estendeu a sua mão e tocou-lhe na manga.

“Porque é que não vens patinar connosco? Os meus amigos iam gostar de te conhecer.”

“Becky” disse ele atrapalhado, “eu preciso de trabalhar e além disso não tenho patins.”

“Podes experimentar os meus”, propôs-lhe ela, “servem-te de certeza por cima das botas e de qualquer modo eu preciso mesmo de descansar, pois estive a patinar toda a manhã.”

“Não te importas mesmo?” perguntou Charlie visivelmente contente.

“Claro que não”, assegurou-lhe ela, enquanto soltava os cordões das suas botas.

No momento em que Charlie ia apertar os patins apareceu uma senhora que os olhou de modo severo.

“Vem Rebecca. Não te disse já que não deves falar com estranhos e que não podes emprestar os teus patins?”

“Mas mãe…”, começou Becky a protestar.

“Sem desculpas, por favor”, interrompeu a mãe bruscamente, “e agora despacha-te, senão chegamos atrasadas à modista. Além disso, minha menina, não quero que tornes a falar com este rapaz de aspecto tão desleixado!”

“Desculpa Charlie”, segredou-lhe Becky com voz triste, “a mãe não se anda a sentir muito bem, ela não quis dizer aquilo. Não fiques zangado com ela.”

“Está bem”, disse Charlie com um ar compreensivo. No entanto a mãe já tinha levado Becky pela mão antes dele ter tempo de dizer mais alguma coisa. “Espero que a Becky não venha a ter problemas por minha causa”, pensou Charlie enquanto olhava para as duas, “mas eu tinha gostado mesmo de ter experimentado os patins.”

O Natal estava à porta e Charlie tinha ainda mais trabalho que o habitual. O padeiro Tibbs tinha imensas encomendas para os dias das festas e por isso Charlie tinha agora muito mais que limpar na padaria do que noutra época do ano. Muitas pessoas também queriam as suas chaminés bem esfregadas antes das noites frias de Inverno, para que o lume pudesse arder com mais força. Charlie andava tão ocupado, que ainda não tinha tido oportunidade de ir ver de novo as crianças andarem de patins, mas enquanto trabalhava, imaginava o dia em que juntamente com Becky poderia patinar no lago gelado – nos seus próprios patins!

Depressa chegou a noite de Natal e Charlie pendurou a sua meia por cima do grande forno da padaria.

“Eu não queria muitas prendas querido Pai Natal,” disse Charlie em voz alta, “só adoraria ter uns patins para o gelo.”

De seguida, deu um prato de leite ao Farrusco e saltou para a sua cama feita de sacos de farinha.

Enquanto do céu chuviscavam flocos de neve e as doze badaladas soavam na torre da igreja, ouviu-se bater devagarinho na janela da arrecadação. Charlie sentou-se, completamente desperto, e viu pela janela uma cara com barbas brancas onduladas que lhe sorria. Era o Pai Natal em pessoa!!

Com um sorriso de grande satisfação, o Pai Natal saltou pela janela para dentro do quarto e sentou-se aos pés da cama de Charlie.

“Eu pensava que tu chegavas muito devagarinho e que não querias que nenhuma criança te visse” disse Charlie muito admirado.

“Pois” replicou o Pai Natal sorridente, “normalmente faço isso, mas esta noite quis vir directamente para aqui e falar contigo, Charlie.”

“… Mas sobre o quê?” perguntou Charlie muito excitado.

O Pai Natal alisou a barba, olhou para o rapaz e disse com um piscar de olhos:

“Bem, meu homenzinho, quando antigamente pelo Natal distribuía os meus presentes, ficava sempre com as minhas roupas vermelhas todas sujas de fuligem das chaminés por onde tinha que passar. No entanto, desde que tu estás na cidade e limpas as chaminés, as minhas roupas chegam ao fim do meu trabalho tão limpas como quando eu comecei; por isso pensei em passar aqui e agradecer-te.”

Charlie olhava fixamente para o Pai Natal com os olhos muito abertos. “Tu vieste para ME agradecer?”….

“Sim, foi para isso que eu vim”, confirmou o Pai Natal, “e agora tenho ainda outra surpresa para ti. O que é que tu desejas mais do que tudo?”

“Bem, querido Pai Natal, se não for pedir muito”, disse Charlie timidamente, “então gostava muito de ter uns patins…”

“Desejo concedido”, disse o bem-disposto Pai Natal, e puxou do seu saco de presentes o par de patins de gelo mais bonito e reluzente que Charlie alguma vez tinha visto.

“Oh!”, gritou Charlie, “muito, muito obrigado querido Pai Natal, esta é a prenda mais maravilhosa que já recebi em toda a minha vida.”
“Ainda tenho aqui mais alguma coisa”, disse o Pai Natal, chegando para perto do rapazinho um pacote embrulhado em papel colorido.

Charlie abriu o presente muito ansioso e encontrou lá dentro um casaco lindo e quentinho com um gorro de lã a condizer do qual pendia um pompom gigante. Além disto, ainda descobriu um cachecol e umas calças novas. Charlie estava tão emocionado que não conseguia dizer nada. Farrusco roçava-se por entre as botas do Pai Natal que olhou para baixo e sorriu.

“Eu também não me esqueci de ti, querido amigo” disse ele tirando um pacotinho do seu saco. “Aí tens um peixe e uma lata de natas, é um miminho de Natal, Farrusco.”

“Agora Charlie, tenho mesmo de me ir embora”, despediu-se o Pai Natal. “Ainda tenho muitas prendas por distribuir. Feliz Natal e mais uma vez obrigado por manteres as chaminés tão limpinhas.”

“Muito obrigado…”, conseguiu apenas responder Charlie, pois o simpático Pai Natal já tinha pulado de novo pela janela e desaparecido no meio dos flocos de neve. Charlie ainda não conseguia acreditar no que ali se tinha passado, embora os patins reluzentes, assim como a roupa nova, ali estivessem lado a lado em cima da cama. “Oh Farrusco”, exclamou ele, “mas que prenda tão linda!”

Farrusco ronronou parecendo estar totalmente de acordo, olhando para a lata das natas e para o peixe que o Pai Natal lhe tinha lá deixado. “Ainda é muito cedo para receberes a tua prenda, Farrusco!” explicou Charlie, pegando no pacotinho. “Isto é para amanhã, para o teu jantar de Natal”, e dizendo isto colocou o peixe e as natas no armário da arrecadação. “Agora temos que voltar a dormir, pois amanhã vamos ter um dia muito especial.”

Primeiro Charlie não adormecia de maneira nenhuma, porque não conseguia deixar de pensar no seu maravilhoso presente, mas por fim adormeceu profundamente e sonhou com toda a diversão que iria ter a andar de patins no lago gelado.

No dia de Natal, Charlie foi acordado pelas harmoniosas batidas do relógio da igreja. Saltou da cama e Farrusco cumprimentou-o com um miado esperançoso.

“Feliz Natal, Farrusco”, disse Charlie.

Farrusco miou mais uma vez, e olhou com desejo para o armário, onde estavam o peixe e as natas.

“Está bem”, consentiu Charlie risonho, “vou dar-te já. Também não faz mal nenhum se fizeres a tua refeição especial de Natal logo ao pequeno-almoço.”

Deu o presente ao gato, encheu uma tina com água quente e entrou lá para dentro. Enquanto tomava banho, cantou todas as músicas natalícias que conhecia de tão contente que estava naquela linda manhã de Natal.

Depois do banho, vestiu as suas roupas novas, pegou nos seus patins novos cintilantes e cheio de entusiasmo, correu todo o caminho para o lago.

Quando lá chegou, já lá estavam todas as outras crianças e Becky estava nesse momento a pôr os seus patins. “Feliz Natal, Becky”, cumprimentou-a Charlie quando chegou ao pé dela.

“Oh, és tu Charlie”; exclamou ela espantada. “ Feliz Natal. Não te tinha reconhecido nas tuas roupas novas… e também tens uns patins!” alegrou-se ela. “Agora já podes patinar comigo no lago.”

Enquanto Charlie atava os seus patins novos, ia contando a Becky a visita do Pai Natal. Quando acabou a sua história, Becky disse-lhe que estava muito feliz por ele. Entretanto os patins já estavam bem presos e Charlie estava preparado para a sua primeira tentativa.

“Agarra-te bem à minha mão”, sugeriu-lhe Becky, “porque no princípio talvez vá ser um bocadinho difícil para ti.”

Contudo, Charlie só esteve um bocadinho bambo das pernas e em pouco tempo já deslizava tão bem como todas as outras crianças.

Charlie e Becky estavam a divertir-se tanto, que não repararam como o tempo passou. De repente, Becky ouviu alguém chamar o seu nome. Eles olharam à sua volta e viram um senhor de pé na margem do lago, que lhes acenava.

“Ai meu Deus!” exclamou Becky. “Aquele é o meu pai e eu tinha prometido chegar hoje cedo a casa para comer, mas o tempo voou enquanto patinávamos.”

“Espero que agora o teu pai não esteja zangado” disse Charlie receoso.

“Não, não”, tranquilizou-o Becky, enquanto ambos se dirigiam para o seu pai. “Ele compreende. O meu pai é muito querido. A minha mãe também é muito simpática” assegurou-lhe a menina. “Ela não costuma ser tão brusca como foi há dias quando a viste pela primeira vez, Charlie. Só que às vezes ela enerva-se muito… eu penso que tem a ver com o meu irmão mais novo. Sabes, ele morreu e a mãe sente tantas saudades dele, que quando está triste diz coisas que não queria.”

“Eu entendo isso muito bem”, esclareceu Charlie com muita pena.

“Estou a ter uma ideia fantástica” disse Becky muito excitada. “Porque é que tu não vens passar este Natal connosco, Charlie? Aí podes ver por ti próprio como a mãe é uma pessoa maravilhosa.”

“Eu não posso fazer isso” gaguejou ele. “Eu só ia incomodar-vos.”

“Oh, por favor diz que sim, Charlie”, implorou ela. “Eu vou perguntar ao pai, mas de certeza que ele não tem nada contra.”

Chegaram então ao local onde o pai de Becky estava. “Olá Rebecca” disse o pai sorridente. “Estava aqui a pensar que hoje não querias o jantar de Natal!” Mas Becky sabia que ele só estava a brincar.

“Pai, este é o meu amigo Charlie”, disse Becky. “Ele pode ir passar o Natal connosco…? Sabes, ele não tem família e não pode celebrar o Natal com ninguém porque vive na padaria e…”

“Não vás tão depressa, senhorita”, pediu o pai de Becky com ar divertido. “Agora conta-me tudo outra vez, devagar, e pela ordem certa.”

Então Becky contou de novo a história de Charlie ao pai e quando acabou o pai sorriu. “Claro que podes vir comer connosco, Charlie, és muito bem-vindo. Mas agora vamos depressa, senão o peru ainda fica frio.” O pai de Becky levou os dois pela mão e apressaram-se todos a ir para casa.

Quando chegaram, Becky correu para o quarto para vestir o seu vestido mais bonito, enquanto o pai foi ter com a mãe para lhe dizer que Charlie iria ficar para o jantar. Enquanto isto se passava, Charlie esperava na sala.

Pouco depois, a mãe de Becky entrou na sala e quando ela se debruçou sobre ele e o apertou contra ela, Charlie viu que tinha lágrimas nos olhos. “Bem-vindo à nossa casa, Charlie” disse ela suavemente, “e Feliz Natal… Nenhuma criança deveria passar um Natal sozinha.”

Depois, pegou-lhe na mão e seguidos por Becky e pelo pai desta, entraram todos na sala de jantar mais bonita que Charlie alguma vez tinha visto.

Num dos cantos estava uma maravilhosa árvore de Natal enfeitada e quando Charlie a viu, estremeceu dizendo: “Eu não tenho prendas para ninguém, mas posso vir amanhã e limpar a chaminé de graça.”

“Não te preocupes com isso” disse-lhe a mãe de Becky, pondo-lhe o braço por cima dos ombros. “O teu sorriso é a melhor das prendas para nós.”

Logo a seguir sentaram-se todos à mesa, o pai de Becky trinchou o peru e comeram a melhor refeição que Charlie alguma vez tinha provado.

Depois da comida, desembrulharam os presentes que estavam debaixo da árvore.

“Eu quero partilhar as minhas prendas contigo, Charlie”, disse Becky “vá ajuda-me a abrir este pacote enorme!”

“O que é que tu dirias, Charlie, se te pedíssemos para ficares a viver aqui connosco para sempre?” perguntou ele. “Nós íamos ficar muito felizes. Terias um quarto só para ti e podias ir com a Becky para a escola. Nós gostaríamos muito de ter, de novo, um rapazinho na nossa família.”

Charlie ficou tão feliz que perdeu a voz.

Becky correu para a mãe e abraçou-a. “Oh mãe, obrigada!” gritou ela. “Estou tão contente.” Charlie, que tinha finalmente encontrado de novo a voz, perguntou: “O Farrusco também pode ficar?”

“Naturalmente. Até será engraçado termos um gato”, respondeu o pai de Becky bem-humorado.

“Mas eu tenho que continuar a limpar a padaria do padeiro Tibbs” afirmou Charlie. “Porque ele se calhar não encontra outra pessoa que lhe faça esse trabalho, e ele foi muito bom para mim quando eu não tinha ninguém.”

“Eu acho muito bonito da tua parte, não te teres esquecido do padeiro Tibbs”, disse o pai de Becky.

“É importante que conserves a confiança dos teus amigos.”

“Estou tão feliz de ter agora uma casa tão bonita” disse Charlie, agradecendo-lhes de todo o coração.

A mãe de Becky beijou-o e Charlie disse: “Talvez eu também vos possa trazer sorte!”

Todos riram alegremente. Lá fora as sombras tornavam-se maiores e a lua por cima das casas anunciava que chegava ao fim um dia de Natal perfeito.

Bruce Peardon
Charlie, o limpa-chaminés
Estugarda, MFK Editora dos Artistas Pintores com a Boca e os Pés, 2002

 

Poemas de Natal

Dia de Natal - Luísa Ducla Soares
 
Hoje é dia de Natal
Mas o Menino Jesus
Nem sequer tem uma cama,
Dorme na palha onde o pus.
 
Recebi cinco binquedos
Mais um casaco comprido.
Pobre Menino Jesus,
Faz anos e está despido.
 
Comi bacalhau e bolos,
Peru, pinhões e pudim.
Só ele não comeu nada
Do que me deram a mim.
 
Os reis de longe lhe trazem
Tesouro, incenso e mirra.
Se me dessem tais presentes,
Eu cá fazia uma birra.
 
Às escondidas de todos
Vou pegar-lhe pela mão
E sentá-lo no meu colo
Para ver televisão.
 
Este menino - Maria Alberta Menéres
 
Este Menino
é pequenino,
qual passarinho
a querer poisar
devagarinho.
 
Devagarinho
poisa no ninho
que o colo tem:
ninho do colo
da sua mãe.
 
Eu queria ser Pai Natal - Luísa Ducla Soares
 
Eu queria ser Pai Natal
E ter carro com renas
Para pousar nos telhados
Mesmo ao pé das antenas.
 
Descia com o meu saco
Ao longo da chaminé,
Carregado de brinquedos
E roupas, pé ante pé.
Em cada casa trocava
Um sonho por um presente
Que profissão mais bonita
Fazer a gente contente!