2º ciclo

 

Histórias

Lenda do galo que cantou a tempo

 

Em certas regiões do nosso País, existia o costume antigo de preparar um galo especialmente para cantar na chamada Missa da Meia-Noite do dia de Natal...
Esse galo, escolhido entre os melhores de cada terra, gozava de grandes regalias, era tratado com requintes de cautela e tinha uma alimentação privilegiada.

Na pequena e pitoresca Vila Nova do Laranjal, da freguesia e concelho de Ponte de Sor, havia também tal costume. E dava-se mesmo o galo a guardar ao homem melhor da terra. 
Conta a lenda, já gasta pelas repetições da vida, que em certo ano se apresentaram ao Meirinho  dois homens fortes e soberbos, disputando entre si o lugar de honra. 
O primeiro que falou parecia não admitir dúvidas: 
— Provo que sou o melhor! Perguntem nas redondezas... Investiguem a minha vida! 
Mas o segundo não se intimidou. E também afirmou com absoluta convicção: 
— Perdão, senhor Meirinho... O melhor sou eu. Veja as esmolas que tenho espalhado durante o ano... o bem que eu faço aos outros. 
Houve uma pausa. Depois, o primeiro dos dois homens voltou a acentuar, um tanto ironicamente: 
— Será preferível investigar, senhor Meirinho! 
Foi a vez do outro se exaltar. Fitando bem de frente o seu rival, perguntou num ar de desafio: 
— Porquê? Alguém se atreve a contestar o que eu digo? 
O Meirinho resolveu intervir, para não deixar azedar a questão. E, inclinando-se para ambos, disse na sua voz pausada e sentenciosa: 
— Basta, senhores, basta!... Sou eu quem deve resolver o vosso caso... Eu, como meirinho desta terra! 
Fazendo uma pausa propositada, a criar expectativa, o Meirinho perguntou depois, em tom arrastado e sem perder os dois homens de vista: 
— Podem apresentar alguma testemunha das virtudes que apregoam?
Ambos o olharam e se entreolharam. Sorrindo. Sorrindo com desdém e superioridade, como quem tem a certeza antecipada da vitória. 
— A menina do Laranjal!

Parecia de propósito. Tinham ambos dito simultaneamente as mesmas palavras. Logo se fitaram, furiosos. Foi a altura do Meirinho se rir:
— Mas… como é isso possível? Então os senhores têm ambos a mesma testemunha? Expliquem-se, por favor!
O primeiro dos homens avançou:
— Senhor Meirinho, quero comunicar-lhe que a menina do Laranjal será em breve minha esposa… Pelo menos, penso declarar-lhe o meu amor…
O outro não se mexeu do lugar, mas retorquiu peremptoriamente:
— Impossível! É comigo que ela vai casar… Já lhe falei nisso e ela aceitou!
O Meirinho voltou a olhar alternadamente para um e para outro.
— Não compreendo... Não compreendo... 
E, de súbito, tomou a resolução mais adequada: 
— Bem… Vamos chamar a própria menina do Laranjal!

Diz a lenda que a menina do Laranjal era, de facto, a jovem mais respeitada das cercanias. A mais respeitada e a mais querida.
Pensa-se até que a terra, toda ela, começara apenas pelo Laranjal. E daí o nome que herdara para o futuro: Vila Nova do Laranjal. Por isso, a jovem simbolizava as tradições da própria terra. 
Era órfã e vivia na companhia duma senhora idosa, a qual tratava por tia, mas cuja origem era desconhecida dos habitantes da terra. Misteriosa e estranha, a velha senhora não gozava da mínima simpatia. Todavia pouco se importava com isso, porque dominava por completo a menina do Laranjal. 
Quando a notícia chegou até elas, a jovem não escondeu a sua estupefacção. 
— Mas... se eu nem sequer os conheço... Como poderei eu casar com um deles? E qual devo escolher?... 
Aflita, buscou os conselhos da velha senhora: 
— Dizei-me, minha tia, por favor... Qual deles hei-de escolher? 
A velha senhora fungou uma risada: 
— Ora, escolhei o melhor! 
Nasceu novo espanto nos olhos da menina do Laranjal: 
— O melhor?... E qual deles é o melhor? 
Vagarosamente, intencionalmente a resposta da velha senhora fez-se ouvir. 
— O melhor é aquele que for mais rico! 
Depois, num ar de sabedoria, ajuntou: 
— Compreendeis, não é verdade? Com dinheiro, pode comprar-se o 
Mundo! Acreditai... 
A menina do Laranjal, ingénua e simples como era, abanou a cabeça, num ar de tristeza: 
— Não, não acredito, senhora minha tia! 
E, num suspiro, logo completou o seu próprio pensamento: 
— Com dinheiro, pode comprar-se o Mundo... Mas não se compra a felicidade! 
A conversa ficou por aí. O Meirinho esperava-as...
E os dois homens esperavam-nas, igualmente. Quando a menina do Laranjal e a velha senhora que dizia ser sua tia saíram à rua, ambos correram para elas. 
O mais impulsivo, e que sempre actuava primeiro, foi o que chegou mais depressa junto da menina do Laranjal, pedindo-lhe para lhe falar em particular, ao que ela acedeu, sem saber que fazer. 
Mas o outro não se incomodou. Parecia até esperar que isso acontecesse. E enquanto o seu rival se declarava publicamente à menina do Laranjal, ele conversava em surdina com a velha senhora... 
Por fim seguiram todos a caminho do gabinete do Meirinho, que não escondia a sua impaciência por tanto ter de esperar...
Sentaram-se. O Meirinho olhou-os, um por um. Fixou depois o olhar na menina do Laranjal, que estava muito pálida e trémula. 
— Dizei-me... Algum destes homens é vosso noivo? 
Timidamente, ela respondeu: 
— Só um deles me falou de amor... 
— Qual? 
O olhar da menina do Laranjal, de fugida, procurou o homem impulsivo com quem falara. E a sua voz mal se ouviu: 
— Aquele... além... 
Porém o homem aproveitou logo a ocasião, para impôr a sua autoridade.
— Claro, Senhor Meirinho! Até agora… só eu lhe falei de amor... Só eu me declarei apaixonado... Portanto, sou eu o seu noivo! 
O outro reagiu com uma risada: 
— A menina do Laranjal sabe lá o que é o amor... Ela nada resolve. Quem resolve é a senhora sua tia. E eu... Eu falei com a senhora sua tia e pedi a mão da menina do Laranjal, que me foi concedida. Sou eu, portanto, quem vai casar com ela. Não é verdade, senhor Meirinho? 
Nesse ponto enganara-se, porém. O Meirinho, segundo conta a lenda, além de Meirinho, era também homem de coração. E adorava a verdade. 
Assim, ficou silencioso, por momentos, a meditar. E depois sentenciou: 
— Tenho muita pena, meu caro senhor, mas a escolha está feita... O homem melhor da terra não pode mentir... E o senhor mentiu-me, ao dizer que já falara de amor à menina do Laranjal... Ao passo que o seu rival foi sincero e verdadeiro... E ele, portanto, o melhor. Ele ficará com o galo! 
Ergueu-se e fez sinal para que todos se erguessem. Depois disse, ainda, num sorriso: 
— Sim, ficará com o galo... E casará com a menina do Laranjal, se ela quiser. 
E certamente queria, pensou o Meirinho antes de retirar-se, porque o olhar que ela trocou com o seu preferido — era um olhar doce e meigo. Um olhar de amor.
 
O tempo correu, sem que nada mais de especial se passasse. O homem escolhido como o melhor tomara conta do galo e instalara-se já no próprio palacete da sua noiva, pois a esperança de amor estava prestes a concretizar-se em casamento... 
A velha senhora que se dizia tia da menina do Laranjal parecia indiferente aos preparativos nupciais. Ausentava-se às vezes, sem dizer nada. Porém, como era sempre estranha e misteriosa, ninguém lhe fazia perguntas. 
Por seu lado, o homem vencido (mas não convencido) garantia aos amigos que não desistia. Havia apenas que aguardar os acontecimentos... 
A menina do Laranjal e o seu eleito viviam um para o outro — e ambos para o seu amor. 
Mal podiam eles adivinhar o que ia acontecer... 
E aconteceu precisamente em vésperas de Natal! 
A notícia caiu como bomba sobre a terra. Desaparecera o galo escolhido e guardado para a Missa da Meia-Noite! 
Era o pior que podia suceder àquela gente. Tocaram os sinos a rebate, o tumulto foi enorme e o Meirinho viu-se obrigado a tomar imediatas providências, mandando prender, sem hesitação, o responsável pela existência do galo. 
De nada serviram as lágrimas suplicantes da menina do Laranjal. Nem os protestos do melhor homem da terra. Nem as juras de inocência que ambos fizeram. 
Perante a ira da multidão, o Meirinho só podia prometer: 
— Justiça será feita! 
E apontava o presumível culpado, o qual apenas sabia repetir a mesma confissão dorida e frágil: 
— Juro que estou inocente! Eu juro que estou inocente! 
Mas o Meirinho, desta vez, e com justa razão, parecia inflexível: 
— Só uma coisa te poderá salvar: revela-nos onde está o galo! 
Entretanto, no meio da multidão, o outro homem esfregava as mãos de contentamento. 
— Eu bem dizia... Pois dêem-lhe o castigo que merece! 
E, de facto, tudo se começou a preparar para esse castigo, conforme narra a antiga lenda. Nesse tempo, a morte pela forca era a mais afrontosa. E o Meirinho ordenou que preparassem a forca para a própria noite de Natal. O castigo serviria de exemplo para sempre... 
O prisioneiro, quase transformado num farrapo humano, esperou pela sua última noite — a noite de Natal. 
Que podia ele fazer? Já não tinha lágrimas para chorar, já não tinha pensamentos para pensar. Restava-lhe somente a consolação que lhe dava a menina do Laranjal, agora perdida de amor por ele e também por amor dele perdida... 
E foi na tarde do derradeiro dia que o homem, já na agonia das suas esperanças, teve uma ideia que nunca o visitara. Se falhasse, nada mais havia a esperar... 
Ao contrário do que poderia supor, a menina do Laranjal encontrou-o mais calmo: 
— Que se passa contigo, meu amor? 
— Ainda confio... 
— Mas já nada é possível... Faltam apenas poucas horas... Só um milagre de Deus! 
— Eu espero por esse milagre! Hoje é o dia em que nasceu Jesus... não deixará morrer um inocente! 
E mostrava tanta confiança na voz e no semblante, que a menina do Laranjal também se sentiu um pouco mais reconfortada. Mas, de si para si, pensou que, infelizmente, tudo estava acabado...

Chegou a noite. Nunca se vira noite de Natal semelhante a essa. A forca erguia-se, sombria e fúnebre, diante da igreja toda iluminada. 
E, como era da lei, o Meirinho permitiu que o condenado formulasse o seu último desejo. 
Serena, a voz do homem ergueu-se diante da curiosidade dos que o escutavam:
— Peço à menina do Laranjal e à senhora sua tia que subam ao alto da torre da igreja. Quero vê-las, lá bem no alto... antes de morrer! 
Imediatamente, o desejo foi satisfeito. Trémula, nervosa, a menina do Laranjal, sempre acompanhada, embora de má vontade, pela senhora sua tia, subiu lentamente ao ponto mais alto da torre da igrejinha bonita, enquanto cá em baixo se faziam os preparativos para a execução do castigo. 
E, de súbito, no meio do silêncio impressionante que se fizera, ouviu-se com verdadeiro espanto o galo cantar. Uma. Duas vezes. Três vezes. E o homem que estava prestes a morrer na forca gritou emocionado: 
— O galo vê-as! O galo vê-as! 
Foi um assombro. Muitos correram em direcção ao local donde viera esse canto inesperado. E, daí a pouco, voltavam triunfantes, trazendo o galo que estivera escondido no quintal do outro pretendente. 
O homem que se salvara da forca não podia conter as lágrimas que lhe inundavam o rosto. 
— Foi um milagre... Um milagre do Menino Jesus! 
E contou então a ideia que tivera. Lembrara-se que sempre o galo cantava, fosse pelo que fosse, quando via a menina do Laranjal e a senhora sua tia. E pensou fazer essa experiência derradeira. Se o galo estivesse na vila e visse a menina do Laranjal e a senhora sua tia no alto da torre, havia certamente de cantar. E cantara, de facto! 
Ajunta a lenda velhinha que ninguém mais soube do outro homem nem da velha senhora que se dizia tia da menina do Laranjal. Desapareceram por completo, nessa mesma noite... 
A missa do galo foi autêntica missa de festa, à qual se seguiu a tradicional «missadura». Em breve o Homem Bom, como agora lhe chamavam, e a menina do Laranjal casaram, com grande alegria de toda a gente da terra. 
Para eles, fora o Menino Jesus que fizera o milagre... E o grito do homem «O galo vê-as! O galo vê-as!» ficou perdurando na tradição, de tal modo que o nome da terra deixou de ser Vila Nova do Laranjal, para passar a ser, como hoje ainda é, Galveias — a bonita e pitoresca vila do concelho de Ponte de Sor. 
E diz-se, igualmente, que vem desse tempo e desta história a tão pitoresca expressão popular «cantaste a tempo», inspirada precisamente pelo galo que, na verdade, cantara a tempo.

 

Fonte Bibliográfica:

 

MARQUES, Gentil - Lendas de Portugal. Lisboa, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 55-60

https://www.lendarium.org/narrative/lenda-do-galo-que-cantou-a-tempo/

 

 

A Noite de Natal – Sophia de Mello Andresen


O amigo 

Era uma vez uma casa pintada de amarelo com um jardim à volta.

No jardim havia tílias, bétulas, um cedro muito antigo, uma cerejeira e dois plátanos. Era debaixo do cedro que Joana brincava. Com musgo e ervas e paus fazia muitas casas pequenas encostadas ao grande tronco escuro. Depois imaginava os anõezinhos que, se existissem, poderiam morar naquelas casas. E fazia uma casa maior e mais complicada para o rei dos anões.

Joana não tinha irmãos e brincava sozinha. Mas de vez em quando vinham brincar os dois primos ou outros meninos. E, às vezes, ela ia a uma festa. Mas esses meninos a casa de quem ela ia e que vinham a sua casa não eram realmente amigos: eram visitas. Faziam troça das suas casas de musgo e maçavam-se imenso no seu jardim.

E Joana tinha muita pena de não saber brincar com os outros meninos. Só sabia estar sozinha.

Mas um dia encontrou um amigo. Foi numa manhã de Outubro.

Joana estava encarrapitada no muro. E passou pela rua um garoto. Estava todo vestido de remendos e os seus olhos brilhavam como duas estrelas. Caminhava devagar pela beira do passeio sorrindo às folhas do Outono. O coração de Joana deu um pulo na garganta.

— Ah! — disse ela. E pensou:

«Parece um amigo. E exactamente igual a um amigo.» E do alto do muro chamou-o:

— Bom dia!

O garoto voltou a cabeça, sorriu e respondeu:

— Bom dia!

Ficaram os dois um momento calados.

Depois Joana perguntou:

— Como é que te chamas?

— Manuel — respondeu o garoto.

— Eu chamo-me Joana.

E de novo entre os dois, leve e aéreo, passou um silêncio. Ouviu-se tocar ao longe o sino de uma quinta. Até que o garoto disse:

— O teu jardim é muito bonito.

— É, vem ver.

Joana desceu do muro e foi abrir o portão.

E foram os dois pelo jardim fora. O rapazinho olhava uma por uma cada coisa. Joana mostrou-lhe o tanque e os peixes vermelhos. Mostrou-lhe o pomar, as laranjeiras e a horta. E chamou os cães para ele os conhecer. E mostrou-lhe a casa da lenha onde dormia um gato. E mostrou-lhe todas as árvores e as relvas e as flores.

— É lindo, é lindo — dizia o rapazinho gravemente.

— Aqui — disse Joana — é o cedro. É aqui que eu brinco.

E sentaram-se sob a sombra redonda do cedro.

A luz da manhã rodeava o jardim: tudo estava cheio de paz e de frescura. Às vezes do alto de uma tília caía uma folha amarela que dava voltas no ar.

Joana foi buscar pedras, paus e musgo e começaram os dois a construir a casa do rei dos anões.

Brincaram assim durante muito tempo.

Até que ao longe apitou uma fábrica.

— Meio-dia — disse o garoto — tenho de me ir embora.

— Onde é que tu moras?

— Além nos pinhais.

— É lá a tua casa?

— É, mas não é bem uma casa.

— Então?

— O meu pai está no céu. Por isso somos muito pobres. A minha mãe trabalha todo o dia mas não temos dinheiro para ter uma casa.

— Mas à noite onde é que dormes?

— O dono dos pinhais tem uma cabana onde de noite dormem uma vaca e um burro. E por esmola dá-me licença de dormir ali também.

— E onde é que brincas?

— Brinco em toda a parte. Dantes morávamos no centro da cidade e eu brincava no passeio e nas valetas. Brincava com latas vazias, com jornais velhos, com trapos e com pedras. Agora brinco no pinhal e na estrada. Brinco com as ervas, com os animais e com as flores. Pode-se brincar em toda a parte.

— Mas eu não posso sair deste jardim. Volta amanhã para brincar comigo.

E daí em diante todas as manhãs o rapazinho passava pela rua. Joana esperava-o empoleirada em cima do muro.

Abria-lhe a porta e iam os dois sentar-se sob a sombra redonda do cedro.

E foi assim que Joana encontrou um amigo.

Era um amigo maravilhoso. As flores voltavam as suas corolas quando ele passava, a luz era mais brilhante em seu redor e os pássaros vinham comer na palma das suas mãos as migalhas de pão que Joana ia buscar à cozinha.

* *

A festa

Passaram muitos dias, passaram muitas semanas até que chegou o Natal.

E no dia de Natal Joana pôs o seu vestido de veludo azul, os seus sapatos de verniz preto e muito bem penteada às sete e meia saiu do quarto e desceu a escada.

Quando chegou ao andar de baixo ouviu vozes na sala grande; eram as pessoas crescidas que estavam lá dentro. Mas Joana sabia que tinham fechado a porta para ela não entrar. Por isso foi à casa de jantar ver se já lá estavam os copos.

Os copos passavam a sua vida fechados dentro de um grande armário de madeira escura que estava no meio do corredor. Esse armário tinha duas portas que nunca se abriam completamente e uma grande chave. Lá dentro havia sombras e brilhos. Era como o interior de uma caverna cheia de maravilhas, e segredos. Estavam lá fechadas muitas coisas, coisas que não eram precisas para a vida de todos os dias, coisas brilhantes e um pouco encantadas: loiças, frascos, caixas, cristais e pássaros de vidro. Até havia um prato com três maçãs de cera e uma menina de prata que era uma campainha. E também um grande ovo de Páscoa feito de loiça encarnada com flores doiradas.

Joana nunca tinha visto bem até ao fundo do armário. Não tinha licença de o abrir. Só conseguia que a criada às vezes a deixasse espreitar entre as duas portas.

Nos dias de festa, do fundo das sombras do interior do armário saíam os copos. Saíam claros, transparentes e brilhantes tilintando no tabuleiro. E para Joana aquele barulho de cristal a tilintar era a música das festas.

Joana deu uma volta à roda da mesa. Os copos já lá estavam, tão frios e luminosos que mais pareciam vindos do interior de uma fonte de montanha do que do fundo de um armário. As velas estavam acesas e a sua luz atravessava o cristal. Em cima da mesa havia coisas maravilhosas e extraordinárias: bolas de vidro, pinhas douradas e aquela planta que tem folhas com picos e bolas encarnadas. Era uma festa. Era o Natal.

Então Joana foi ao jardim. Porque ela sabia que nas Noites de Natal as estrelas são diferentes.

Abriu a porta e desceu a escada da varanda. Estava muito frio, mas o próprio frio brilhava. As folhas das tílias, das bétulas e das cerejeiras tinham caído. Os ramos nus desenhavam-se no ar como rendas pretas. Só o cedro tinha os seus ramos cobertos.

E muito alto, por cima das árvores, era a escuridão enorme e redonda do céu. E nessa escuridão as estrelas cintilavam, mais claras do que tudo. Cá em baixo era uma festa e por isso havia muitas coisas brilhantes: velas acesas, bolas de vidro, copos de cristal. Mas no céu havia uma festa maior, com milhões e milhões de estrelas.

Joana ficou algum tempo com a cabeça levantada. Não pensava em nada. Olhava a imensa felicidade da noite no alto céu escuro e luminoso, sem nenhuma sombra.

Depois voltou para casa e fechou a porta. — Ainda falta muito tempo para o jantar? — perguntou ela a uma criada que ia a atravessar o corredor.

— Ainda falta um bocadinho, menina — disse a criada. Então Joana foi à cozinha ver a cozinheira

Gertrudes, que era uma pessoa extraordinária porque mexia nas coisas quentes sem se queimar e nas facas mais aguçadas sem se cortar, e mandava em tudo, e sabia tudo. Joana achava-a a pessoa mais importante que ela conhecia.

A Gertrudes tinha aberto o forno e estava debruçada sobre os dois perus do Natal. Virava-os e regava-os com molho. A pele dos perus, muito esticada sobre o peito recheado, já estava toda doirada.

— Gertrudes, ouve uma coisa — disse Joana.

A Gertrudes levantou a cabeça e parecia tão assada como os perus.

— O que é? — perguntou ela.

— Que presentes é que achas que eu vou ter?

— Não sei — disse Gertrudes — não posso adivinhar.

Mas Joana tinha a maior confiança na sabedoria de Gertrudes e por isso continuou a fazer perguntas.

— E achas que o meu amigo vai ter muitos presentes?

— Qual amigo? — disse a cozinheira.

— O Manuel.

— O Manuel não. Não vai ter presentes nenhuns.

— Não vai ter presentes nenhuns!?

— Não — disse a Gertrudes abanando a cabeça.

— Mas porquê, Gertrudes?

— Porque é pobre. Os pobres não têm presentes.

— Isso não pode ser, Gertrudes.

— Mas é assim mesmo — disse a Gertrudes fechando a tampa do forno.

Joana ficou parada no meio da cozinha. Tinha compreendido que era «assim mesmo».

Porque ela sabia que a Gertrudes conhecia o mundo. Todas as manhãs a ouvia discutir com o homem do talho, com a peixeira e com a mulher da fruta. E ninguém a podia enganar. Porque ela era cozinheira há trinta anos. E há trinta anos que ela se levantava às sete da manhã e trabalhava até às onze da noite. E sabia tudo o que se passava na vizinhança e tudo o que se passava dentro das casas de toda a gente. E sabia todas as notícias, e todas as histórias das pessoas. E conhecia todas as receitas de cozinha, sabia fazer todos os bolos e conhecia todas as espécies de carnes, de peixes, de frutas e de legumes. Ela nunca se enganava. Conhecia bem o mundo, as coisas e os homens.

Mas o que a Gertrudes tinha dito era esquisito como uma mentira. Joana ficou calada a cismar no meio da cozinha.

De repente abriu-se a porta e apareceu uma criada que disse:

— Já chegaram os primos.

Então Joana foi ter com os primos.

Daí a uns minutos apareceram as pessoas grandes e foram todos para a mesa.

Tinha começado a festa do Natal.

Havia no ar um cheiro de canela e de pinheiro. Em cima da mesa tudo brilhava: as velas, as facas, os copos, as bolas de vidro, as pinhas doiradas. E as pessoas riam e diziam umas às outras: «Bom Natal». Os copos tilintavam com um barulho de alegria e de festa. E vendo tudo isto Joana pensava:

— Com certeza que a Gertrudes se enganou. O Natal é uma festa para toda a gente. Amanhã o Manuel vai-me contar tudo. Com certeza que ele também tem presentes.

E consolada com esta esperança Joana voltou a ficar quase tão alegre como antes.

O jantar do Natal era igual ao de todos os anos.

Primeiro veio a canja, depois o bacalhau assado, depois os perus, depois os pudins de ovos, depois as rabanadas, depois os ananases.

No fim do jantar levantaram-se todos, abriu-se de par em par a porta e entraram na sala.

As luzes eléctricas estavam apagadas. Só ardiam as velas do pinheiro.

Joana tinha nove anos e já tinha visto nove vezes a árvore do Natal. Mas era sempre como se fosse a primeira vez. Da árvore nascia um brilhar maravilhoso que pousava sobre todas as coisas. Era como se o brilho de uma estrela se tivesse aproximado da Terra. Era o Natal. E por isso uma árvore se cobria de luzes e os seus ramos se carregavam de extraordinários frutos em memória da alegria que, numa noite muito antiga, se tinha espalhado sobre a Terra.

E no presépio as figuras de barro, o Menino, a Virgem, São José, a vaca e o burro, pareciam continuar uma doce conversa que jamais tinha sido interrompida. Era uma conversa que se via e não se ouvia.

Joana olhava, olhava, olhava.

Às vezes lembrava-se do seu amigo Manuel.

Um dos primos puxou-a por um braço.

— Joana, ali estão os teus presentes.

Joana abriu um por um os embrulhos e as caixas: a boneca, a bola, os livros cheios de desenhos a cores, a caixa de tintas.

À sua volta todos riam e conversavam.

Todos mostravam uns aos outros os presentes que tinham tido, falando ao mesmo tempo.

E Joana pensava:

— Talvez o Manuel tenha tido um automóvel.

E a festa do Natal continuava.

As pessoas grandes sentaram-se nas cadeiras e nos sofás a conversar e as crianças sentaram-se no chão a brincar.

Até que alguém disse:

— São onze horas e meia. São quase horas da missa. E são horas de as crianças se irem deitar.

Então as pessoas começaram a sair.

O pai e a mãe de Joana também saíram.

— Boa noite, minha querida. Bom Natal — disseram eles.

E a porta fechou-se.

Daí a um instante saíram as criadas.

A casa ficou muito silenciosa. Tinham ido todos para a Missa do Galo, menos a velha Gertrudes, que estava na cozinha a arrumar as panelas.

E Joana foi à cozinha. Era a altura boa para falar com a Gertrudes.

— Bom Natal, Gertrudes — disse Joana.

— Bom Natal — respondeu a Gertrudes. Joana calou-se um momento. Depois perguntou:

— Gertrudes, aquilo que disseste antes do jantar é verdade?

— O que é que eu disse?

— Disseste que o Manuel não ia ter presentes de Natal porque os pobres não têm presentes.

— Está claro que é verdade. Eu não digo fantasias: não teve presentes, nem árvore do Natal, nem peru recheado, nem rabanadas. Os pobres são os pobres. Têm a pobreza.

— Mas então o Natal dele como foi?

— Foi como nos outros dias.

— E como é nos outros dias?

— Uma sopa e um bocado de pão.

— Gertrudes, isso é verdade?

— Está claro que é verdade. Mas agora era melhor que a menina se fosse deitar porque estamos quase na meia-noite.

— Boa noite — disse Joana. E saiu da cozinha.

Subiu a escada e foi para o seu quarto. Os seus presentes de Natal estavam em cima da cama. Joana olhou-os um por um. E pensava:

— Uma boneca, uma bola, uma caixa de tintas e livros. São tal e qual os presentes que eu queria. Deram-me tudo o que queria. Mas ao Manuel ninguém deu nada.

E sentada na beira da cama, ao lado dos presentes, Joana pôs-se a imaginar o frio, a escuridão e a pobreza. Pôs-se a imaginar a Noite de Natal naquela casa que não era bem uma casa, mas um curral de animais.

«Que frio lá deve estar!», pensava ela.

«Que escuro lá deve estar!», pensava ela.

«Que triste lá deve estar!», pensava.

E começou a imaginar o curral gelado e sem nenhuma luz onde Manuel dormia em cima das palhas, aquecido só pelo bafo de uma vaca e de um burro.

— Amanhã vou-lhe dar os meus presentes — disse ela. Depois suspirou e pensou:

«Amanhã não é a mesma coisa. Hoje é que é a Noite de Natal.»

Foi à janela, abriu as portadas e através dos vidros espreitou a rua. Ninguém passava. O Manuel estava a dormir. Só viria na manhã seguinte. Ao longe via-se uma grande sombra escura: era o pinhal.

Então ouviu, vindas da Torre da Igreja, fortes e claras, as doze pancadas da meia-noite.

«Hoje», pensou Joana, «tenho de ir hoje. Tenho de ir lá agora, esta noite. Para que ele tenha presentes na Noite de Natal.»

Foi ao armário tirou um casaco e vestiu-o. Depois pegou na bola, na caixa de tintas e nos livros. Apetecia-lhe levar também a boneca, mas ele era um rapaz e com certeza não gostava de bonecas.

Pé ante pé Joana desceu a escada. Os degraus estalaram um por um. Mas na cozinha a Gertrudes fazia muito barulho a arrumar as panelas e não a ouviu.

Na sala de jantar havia uma porta que dava para o jardim. Joana abriu-a e saiu, deixando-a ficar só fechada no trinco.

Depois atravessou o jardim. O Alex e a Ghiribita ladraram.

— Sou eu, sou eu — disse Joana.

E os cães, ouvindo a sua voz, calaram-se.

Então Joana abriu a porta do jardim e saiu.

A estrela

Quando se viu sozinha no meio da rua teve vontade de voltar para trás. As árvores pareciam enormes e os seus ramos sem folhas enchiam o céu de desenhos iguais a pássaros fantásticos. E a rua parecia viva. Estava tudo deserto. Àquela hora não passava ninguém. Estava toda a gente na Missa do Galo. As casas, dentro dos seus jardins, tinham as portas e as janelas fechadas. Não se viam pessoas, só se viam coisas. Mas Joana tinha a impressão de que as coisas a olhavam e a ouviam como pessoas.

«Tenho medo», pensou ela.

Mas resolveu caminhar para a frente sem olhar para nada.

Quando chegou ao fim da rua virou à direita e meteu a um atalho entre dois muros. E no fim do atalho encontrou os campos, planos e desertos. Ali, sem muros nem árvores nem casas, a noite via-se melhor. Uma noite altíssima e redonda e toda brilhante.

O silêncio era tão forte que parecia cantar. Muito ao longe via-se a massa escura dos pinhais.

«Será possível que eu chegue até lá?», pensou Joana.

Mas continuou a caminhar.

Os seus pés enterravam-se nas ervas geladas. Ali no descampado soprava um curto vento de neve que lhe cortava a cara como uma faca.

«Tenho frio», pensou Joana.

Mas continuou a caminhar.

À medida que se ia aproximando dele, o pinhal ia-se tornando maior. Até que ficou enorme.

Joana parou um instante no meio dos campos.

«Para que lado ficará a cabana?», pensou ela.

E olhava em todas as direcções à procura de um rasto.

Mas à sua direita não havia rasto, à sua esquerda não havia rasto e à sua frente não havia rasto.

«Como é que hei-de encontrar o caminho?», perguntava ela.

E levantou a cabeça.

Então viu que no céu, lentamente, uma estrela cami¬nhava.

«Esta estrela parece um amigo», pensou ela.

E começou a seguir a estrela.

Até que penetrou no pinhal. Então num instante as sombras fizeram uma roda à sua volta. Eram enormes, verdes, roxas, pretas e azuis, e dançavam com grandes gestos. E a brisa passava entre as agulhas dos pinheiros, que pareciam murmurar frases incompreensíveis. E vendo-se assim rodeada de vozes e de sombras Joana teve medo e quis fugir. Mas viu que no céu, muito alto, para além de todas as sombras, a estrela continuava a caminhar. E seguiu a estrela.

Já no meio do pinhal pareceu-lhe ouvir passos.

«Será um lobo?», pensou.

Parou a escutar. O barulho dos passos aproximava-se. Até que viu surgir entre os pinheiros um vulto muito alto que vinha caminhando ao seu encontro.

«Será um ladrão?», pensou.

Mas o vulto parou na sua frente e ela viu que era um rei. Tinha na cabeça uma coroa de oiro e dos seus ombros caía um longo manto azul todo bordado de diamantes.

— Boa noite — disse Joana.

— Boa noite — disse o rei. — Como te chamas?

— Eu, Joana — disse ela.

— Eu chamo-me Melchior — disse o rei. E perguntou:

— Onde vais sozinha a esta hora da noite?

— Vou com a estrela — disse ela.

— Também eu — disse o rei —, também eu vou com a estrela.

E juntos seguiram através do pinhal.

E de novo Joana ouviu passos. E um vulto surgiu entre as sombras da noite.

Tinha na cabeça uma coroa de brilhantes e dos seus ombros caía um grande manto vermelho coberto de muitas esmeraldas e safiras.

— Boa noite — disse ela. — Chamo-me Joana e vou com a estrela.

— Também eu — disse o rei — também eu vou com a estrela e o meu nome é Gaspar.

E seguiram juntos através dos pinhais. E mais uma vez Joana ouviu um barulho de passos e um terceiro vulto surgiu entre as sombras azuis e os pinheiros escuros.

Tinha na cabeça um turbante branco e dos seus ombros caía um longo manto verde bordado de pérolas. A sua cara era preta.

— Boa noite — disse ela. — O meu nome é Joana. E vamos com a estrela.

— Também eu — disse o rei — caminho com a estrela e o meu nome é Baltasar.

E juntos seguiram os quatro através da noite.

No chão, os galhos secos estalavam sob os passos, a brisa murmurava entre as árvores e os grandes mantos bordados dos três reis do Oriente brilhavam entre as sombras verdes, roxas e azuis.

Já quase no fundo dos pinhais viram ao longe uma claridade. E sobre essa claridade a estrela parou.

E continuaram a caminhar.

Até que chegaram ao lugar onde a estrela tinha parado e Joana viu um casebre sem porta. Mas não viu escuridão, nem sombra, nem tristeza. Pois o casebre estava cheio de claridade, porque o brilho dos anjos o iluminava.

E Joana viu o seu amigo Manuel. Estava deitado nas palhas entre a vaca e o burro e dormia sorrindo.

Em sua roda, ajoelhados no ar, estavam os anjos. O seu corpo não tinha nenhum peso e era feito de luz sem nenhuma sombra.

E com as mãos postas os anjos rezavam ajoelhados no ar.

Era assim, à luz dos anjos, o Natal de Manuel.

— Ah — disse Joana — aqui é como no presépio!

— Sim — disse o rei Baltasar — aqui é como no presépio.

Então Joana ajoelhou-se e poisou no chão os seus presentes.

Sophia de Mello Breyner Andresen
A Noite de Natal
Porto, Figueirinhas, 1989
Adaptação

in https://prepararonatal.wordpress.com/